quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O vestido da sorte (final)


Ficamos juntos por oito músicas e meia. Porque, enquanto existem sortes feitas para durar uma vida, existem sortes que só duram o instante de uma raspadinha. E porque, pela incerteza de uma paixão, ninguém passa incólume. Como o Gabe e eu.

Seguimos dançando, rolando pelo chão, noite afora, noite adentro, frases desconexas, risos contidos que se arrebentavam em gargalhadas sem piedade, um pouco mais de violão, um pouco menos de explicações e justificativas, até que um sol nascia e nos trazia de volta à realidade do dia. Mas, noite após noite, seguimos como nossos amores vampíricos, com nossos telefonemas guturais, com nossa telepatia arquitetada, com nossas eras de planos e de músicas que jamais dariam certo. Ou dariam.

Oito músicas e meia - foi o tanto que conseguimos compor enquanto estivemos juntos. Da balada indie e clichê de Mrs. Robinson, passamos a diálogos musicais baseados em catarses e ímpetos de ciúme, ou de desejo febril. Engravidávamos de belas canções - abortávamos algumas, no entanto, e passávamos tempo sem conseguir escrever nada, e íamos nos amando para afogar a frustração e o tédio, para passar o tempo.

Não éramos Johnny e June, e estávamos longe de sermos Sid e Nancy, graças a Deus; mas, no jogo, no amor ou na música, a gente se dava bem, sem saber por quê, sem nem saber onde aquilo ia dar - se ia dar. De Mrs. Robinson, batizamos o recém-nascido amor com uma valsa bonitinha, tirada da trilha sonora de algum filme romântico adolescente, e logo nos enroscamos na salsa. Ele se declarou, guitarra em punho e joelho em terra, entre versos de pop rock - e meu batom manchou a letra da música, e o chão, e a sua guitarra branca que nos fazia companhia. Morremos de desejo ao som de Aerosmith, e de ódio a cada discussão fútil, e de saudade que nem (Pink) Floyd explica, ao ouvirmos, aos soluços, how I wish / how I wish you were here - enfim, como foi difícil encarar a verdade: que éramos nós as duas almas perdidas nadando naquele aquário! Ah, era o rock, o rock veio nos salvar. Tocamos a balada do amor inabalável.

Mas, ao final da faixa, éramos nós a morrer novamente - e de vez. Não era questão de piedade: era a dor impetuosa do blues da separação.

Ele passou a detestar o meu vestido, o meu vestido preto de viúva, e a dor de me encontrar por aí, nas esquinas, nos sonhos, em uma lembrança sem importância. Eu passei a detestar o seu quarto, agora tão cheio de móveis, e a sua guitarra branca, e as manchas de batom pelos cantos do seu quarto, da sua boca, e todas as nossas rimas.

E eu pensava, "que azar, meu Deus!" Azar. Sorte. Palavras tão cheias de nove-horas e presságios de loterias, ou de crendices e sacrilégios, de deus-me-livres e se-deus-quiseres. Mas só o que eu sabia, naquele exato momento, naquela exata pontada de dor, era a iminência da recuperação. Bastava um pouco menos de dor, um pouco mais de razão, aumentar um pouco o volume dos fones de ouvido e repetir para mim mesma, como uma oração ou uma canção de ninar, no alarms and no surprises, com voz de Regina Spektor, até sentir secarem as lágrimas.

E foi assim que fiz nosso amor adormecer, até, puf, sumir de nossas vidas sem deixar rastros - só som.

Hoje, o Gabriel é apenas uma foto instantânea no fundo de uma caixa de recordações. Eu tinha também o meio rascunho da última música que tentamos escrever, mas essa era dolorosa demais para deixar assim tanto tempo guardada. Passado o ódio e a dor do fim, eu estava inteira de novo. Meu cabelo agora era longo e ruivo - não crepom, e sim laranja. A faculdade continuava, e a vida seguia, e voltei para o violão - hoje, componho sozinha.

Nunca mais nos falamos. Quer dizer, ainda nos cruzamos de vez em quando, mas não nos sentimos confortáveis o bastante para nos encararmos e nos perguntarmos o que foi que aconteceu, onde foi que erramos, ou se valeria a pena continuar tentando.

Agora, você me pergunta que fim dei no vestido - nenhum. Pois aquele vestido me trouxe boas músicas, bons beijos, bons papos em boas noites enluaradas, boas inspirações e a sorte de um amor intenso, irremediável, incerto e belo. Passado o luto, vesti-me de preto novamente - o mesmo vestido, os mesmos jeans, com outras botas e outros brincos - eu é que já não era a mesma. Não, mesmo.

***
Um ano e meio de águas passadas e outras músicas, uma madrugada de sábado, um barzinho rock, um bando de amigos, meu vestido favorito. Um torpedo SMS.

"Ainda estou tentando entender que tipo de garota usa vestido com calça jeans."

É a ironia do destino brincando de ser feliz. Porque, com a sorte, nunca se sabe quando, nem o quê. Rio e cedo à tentação da resposta.

"É como a música: você já deve ter visto aquela combinação maluca em algum lugar, em um contexto qualquer, não faz o menos sentido, mas, de alguma forma, combina com a garota. E, o que é melhor, o vestido ainda cabe nela, como o verso ainda cabe na música. E continua sendo o que tem pra hoje."

- Que sorte que o verso ainda cabe na música. E que sorte encontrar minha garota preferida no meu vestido preferido.

Ergo os olhos, novamente cedendo à tentação do riso e da resposta.

- Não sou sua garota. E você sempre odiou esse vestido.

Ele sorriu, irremediavelmente lindo... e sacana. Estava mais velho, mais homem, mais barbudo, jaqueta de couro marrom, perfume matador.

- Então a sorte é que você ainda é a mesma Vicky de sempre. E que você também parece achar que ainda temos uma música pra terminar.

Dei um gole nas sobras de gelo derretido do fundo do copo e sorri - um pouco de sarcasmo na voz, que sou dura na queda.

- Pra terminar, eu não sei. Pra começar, talvez...

Ah, ironias do destino. Ou, no meu caso, do vestido. Porque, eu já disse, toda mulher que se preze tem um vestido da sorte. E o meu é preto e justo, de mangas longas e decote canoa.

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