domingo, 24 de novembro de 2013

Bem-me-queira

Me deixa entrar na sua vida como o vento entra pela janela. Pois só assim conseguirei permanecer dentro dela. Você tem medo de um amor frio que te desperte de um sono profundo; eu morro de medo de não conseguir de acordar a tempo. Me deixa furar a sua bolha e invadir o seu mundo, o seu porta-retrato, o chão do seu apartamento.

Me deixa ficar; deixa o frio e a neve que se entendam lá fora. Eu preciso de você. Não precisa falar; eu não quero conversar. Só quero me aninhar ao lado do seu corpo inteiro e ter o prazer de te invadir. Se abre comigo, e pra mim; tira esse terno-e-gravata, essa pose de bom moço, deixa essa barba crescer, e vem cá. Vem me puxar pela mão, pela cintura, pelo braço, mas, por favor, eu imploro que não me perca mais uma vez. Não sou fácil de perder, mas você já gastou todas as suas últimas chances: mal-me-queres despedaçados pelo chão.

Eu plantei um jardim inteiro de esperanças por você, e, neste outono frio que agora chega ao fim, só restam flores nuas e secas.

Acabaram-se as esperanças do jardim, mas resta ainda um sentimento azul e alado dentro do peito, prestes a bater asas e voar para nunca mais, para sabe Deus onde, quando, por quê.

É só o chamado ingênuo do coração, esperando que nesse homem haja um menino solitário precisando de carinho, e que, por alguma razão, não tem forças para ruir os próprios muros que o protegem da vida do mundo. Pois os mesmos muros que te separam da dor do mundo também te separam do beijo, da cura, da maravilha que é viver-morar, para todo o sempre, nos braços de quem bem-te-quer.

Abre a janela e me deixa entrar, como o sol, antes que o inverno chegue para ficar. Talvez ainda dê tempo de fazer o jardim florir, flor a flor, mas de uma nova semente: a flor do amor em multicor.

Volta, sentimento alado, e vem fazer ninho nos braços do Alguém.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Indo embora


"Mas você não tem medo?", me perguntaram uma vez. Sobre o fato de eu ter saído de casa aos dezessete para fazer faculdade em uma cidade desconhecida. Ainda outra vez quando fui embora do país pela primeira vez. E, agora, ouço a pergunta se repetir enquanto faço as malas pela quarta vez.

Se eu tenho medo? Respondi que não. Mas, na verdade, eu tenho um pouco de medo, sim. Não sei se "medo" seria a melhor palavra para descrever isso. É, na verdade, um sentimento que não parece tem nome próprio. É a dor de ter repartido o coração em mil pedaços, tendo-os deixado espalhados por duas Américas inteiras, e saber que ele jamais será um novamente. Pois conheci pessoas demais, estive em lugares demais, e fui acomodando cada vez mais gente no peito e no pensamento. Falei outras línguas, vivi outras culturas, vi a vida sob olhos estrangeiros e nativos, peguei um zilhão de trens rumo a um milhão de lugares, me perdi e ri, badalei pelas ruas no salto mais alto, lindo e dolorido do mundo; fui quem me tornei, sem medo e sem pudor. O preço disso tudo? O coração, que está em frangalhos. É algo irreversível. Pois, se não se pode ter tudo, como ter, ao mesmo tempo, o colo da mãe, o abraço do amigo, o beijo do amor, a sabedoria do professor e a cumplicidade do colega, quando todas essas coisas são tão necessárias, o tempo todo e ao mesmo tempo? Como fugir para o campo antes de ser engolida pelo concreto, e como fugir do silêncio insuportável no instante surdo de um trem-bala?

E descobri que isso não se chama medo: se chama aflição. A aflição de não ser onipresente: eu não sou Deus, e o Paraíso não é aqui! Mas, se o próprio Deus nos advertiu de que "aflição" seria a palavra de ordem neste planeta, pago o preço de viver assim, dividida, meio cá, meio lá, eternamente esperando a hora de ir e de voltar. É que não dá para voltar atrás em matéria de sentimento. E, na incompletude deste coração cigano, recomeço a fazer as malas, a mandar beijo, abraço, saudações e dizer, "tchau, até a próxima, a gente se vê!"; mas nunca é "adeus".

E dou conta de ir de novo, estranhamente feliz da vida, quase explodindo de alegria, como manda o figurino. Também não dá para voltar atrás em matéria de destino. Se é que eu acredito nessas coisas...

sábado, 3 de agosto de 2013

Voltando para casa


Já passa do horário de boas meninas estarem na cama. Mas eu não estou. Estou voltando para casa, atravessando ruas escuras, precariamente iluminadas por uns poucos postes - gigantes palitos de fósforo, lumes prestes a se apagar, resto de brasa tímida esmaecida. Sozinha. Sem medos. A cidade é minha, e sou livre.

Um, dois, três carros passam na rua. E somem. Três adolescentes conversam tranquilamente à soleira da porta de casa. Silêncio quando passo; meus passos de coturno ricocheteiam no asfalto: toc, toc, toc. Ouço qualquer muxoxo, pois uma mulher andando sozinha na rua a esta hora, boa coisa não pode estar fazendo. Eu não ligo. Apesar do inverno, a noite está agradável, e apenas uma jaqueta de couro me basta - insígnia de uma identidade não tão secreta: a anti-heroína. Mas, esta noite, eu me sinto como uma fugitiva. Do que ou de quem, só Deus sabe; sabe que, no fundo, no fundo, estou fugindo de, quando, na verdade, queria estar fugindo para.

Eu não quero falar nisso. Eu não quero pensar nisso. Mas é difícil viver deste lado da história quando você está aí, do outro lado, vivendo sua vida. Vivendo a nossa vida. Pois essa vida também me pertence. Mas eu tive que voltar, e, agora, estou aqui. E você ficou aí, me esperando (será?). Mas, se "quem espera sempre cansa", ou alguma coisa assim, eu me pergunto se você ainda estará aí, do jeito que eu deixei, quando eu voltar. Pois eu ainda estou aqui, e também estou vivendo a minha vida. Estou aqui de corpo, mas não de alma; a cabeça e o coração estão sempre aí, e espero que você saiba disso. E espero que você não tenha se esquecido disso nem por um segundo, nem mesmo no milissegundo instantâneo daquela foto ridícula de sexta-feira à noite. Nem mesmo quando você a abraçou, por pose, tédio ou desejo. Sim, eu sei que não significa nada: eu só espero que você saiba disso também.

Ergui o olhar, varrendo o céu estrelado com os olhos, em busca da lua. Sabe, outra noite um cara qualquer me perguntou por que eu ainda olho para a lua. E respondi que não sei. A única coisa que sei é que ainda me importo. Eu ainda me importo com todo e qualquer detalhe que me faça sonhar um pouco mais. Mas, neste momento, procurando na lua uma resposta, só encontrei mais perguntas.

Então responda, meu amor: se até a lua é ilusão, o que será de nós dois?

Atravessei ruas, virei esquinas, cruzei calçadas, contei quarteirões. Estou finalmente na rua de casa, no meio da rua vazia. E me pergunto como seria olhar o céu se me deitasse no asfalto. Mas você não está aqui; então, enfio essa ideia besta no bolso e entro em casa. Só quero que você saiba que, quando a gente se cruzar de novo, eu te garanto que vou saber o que fazer. Ou quando a lua aparecer de novo. Ou, tão-somente, quando eu virar essa chave e entrar por essa porta, talvez tudo faça um pouco mais de sentido.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Só eu


Às vezes eu preciso é de umas férias de mim mesma. Fazer a muda, tirar primeiro a pele, depois a carne, depois os nervos, as veias e os ossos, até sobrar só eu. A alma eu, solta e séria. Séria, sim, sem meios sorrisos, nem meias verdades. Séria, mas não infeliz. Apenas eu. Nenhuma expressão além de ser a própria expressão de mim mesma. Sem o peso das ideologias e das estruturas das estruturas das estruturas das quais sou tecida. Vontade de puxar o fio e desfazer logo a malha toda - de ficar amontoada num novelo de mim mesma, meio sem ter que saber quem eu sou, sem que isso seja um problema. Sem que eu precise saber. Um novelo que rola e se esparrama pela sala, contornando os cantos, aleatória, desenfreada, sem paredes que possam me parar. Pondo abaixo os muros junto com as roupas, a pele, as ideias. Sendo mais do que aquela que vejo no espelho. Trocando o sou pela soul.

Pois ser assim, só eu, não é sempre assim. Não se pode ser sempre só eu. Ser  eu é ainda menos do que sou ao sair do banho - nua, limpa, desfeita, com os cabelos para trás. É menos carne, menos mente, menos pensamento. Só alma, e um pouco mais de cor. Matando um pouco da realidade. Um balão de gás preso apenas por uma corda invisível à realidade de mim mesma.

Mas a vida é brava e breve, e é preciso me recompor. Enrolar o novelo, refazer a malha, colar os ossos, os órgãos, fechar a pele. As cicatrizes ficam; a cura é certeira. E, dessa longa viagem de férias, retorno, risonha ou triste, moleca ou madura, vestida ou descalça, do jeito que a vida me permite ser naquele momento. E, de ser só alma, passo, de novo, a ser eu. Como sempre foi e sempre há de ser.


sexta-feira, 28 de junho de 2013

Era junho



Dizem que os sonhos sempre querem nos dizer algo sobre nós mesmos - presságios daquilo que desconhecemos, ou, então, daquilo que está ali, esfregado nas fuças, mas que, por alguma razão, não somos capazes de enxergar. Aquilo que, de tão esfregado, acabou absorvido, encravado na alma, na mente, no corpo inteiro.

Fui transportada, mais uma vez, para o seu apartamento quase sem móveis. Estávamos na sala, bebendo qualquer coisa, sentados no chão. Um colchão, mais algum móvel de madeira do qual não consigo me lembrar e algumas velas aromáticas espalhadas pelo carpete de madeira, que, com o reflexo dos raios de fim de tarde, davam ao ambiente uma atmosfera alaranjada, dramática e solar. A grande janela retangular de batentes brancos estava aberta, escancarando o sol que morria, incendiando a metrópole com a multicor vivacidade dos mesmos tons de laranja.

Não sei bem o que me levou até ali. Só sei que, naquele momento, eu queria e precisava estar ali, sentada confortavelmente no chão, de calça jeans e meias gastas, naquela cumplicidade química e espiritual que rolava entre nós. Como se pudéssemos ser quem somos de verdade - e não de mentira, só para variar. Não estou sendo redundante: estou sendo enfática.

Foi um sonho estranho e confortável ao mesmo tempo. Eu estava reclamando da falta de compreensão dos meus pais. Eles não entendiam que, mesmo depois de formada e "encaminhada", com um MBA na mão, eu, talvez, estivesse de saco cheio. De saco cheio da vida que eles planejaram para mim. De saco cheio de viver como se eu ainda tivesse dezessete anos e precisasse de permissão para resolver meus próprios problemas. Fiz um drama mexicano, pois queria enfatizar a minha dor, e, poxa, você me ouviu. E me entendeu. E nem precisei ser tão enfática assim. Quando finalmente sentiu que era hora de dizer algo, você me disse algo além de "relaxa, vai dar tudo certo". Porque essa é a resposta que as pessoas dão quando não querem saber do seu problema - querem é que você cale a boca e não seja tão ingrato. Porque, talvez, não fosse dar certo droga nenhuma se eu continuasse agindo como uma menina mimada de quase vinte e seis, caramba!

E, ali, no chão do seu apartamento, você me disse, com muita doçura e firmeza dobrada, que [talvez] aquela não fosse a solução. Digo, a raiva. A cabeça quente. A verborragia. Nunca é. Eu sei. Quer dizer, eu não sei. Quer dizer, eu não quero saber. Desculpa. É que não dá pra evitar. É muita pressão. Ser adulto é um saco - e, quando me dei por mim, eu estava dentro dele, amarrada até o pescoço.

E, com cinco ou seis frases bem formuladas, freando meus desabafos etílicos, que morreram de verborragia, você fez meus monstros parecerem menores do que eu os havia pintado, e o meu mundo começou a girar um pouco mais devagar, cada vez mais devagar, sem ainda frear, porém e por pouco, nos seus lábios e braços e mãos e olhos de roda gigante. E as verdades que eu não disse ficaram presas no batom que você não tirou. Ah, queria eu poder controlar os sonhos!

Sorrimos, cúmplices de um desabafo da vida adulta. E concordamos que ser adulto é chato pra caramba. Mas que fica menos chato e menos difícil quando se sabe amar.

Você foi um ótimo ouvinte. Um ótimo amigo. Um amor melhor ainda.

Assunto encerrado, fomos à cozinha desbravar a geladeira para, em seguida, comermos qualquer besteira no chão da sala nua. Afinal, o chão é o lugar mais perto da realidade. E aquele fim de tarde teve som de Radiohead.

***

Acordei num sobressalto, como todas as manhãs, com o alarme escandaloso me chamando para um novo dia. Você não estava mais ali, mas os meus problemas estavam todos ali. Dei de ombros. Então me lembrei do sonho e sorri. "Obrigada, até logo".

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Longitude



            No meu calendário, há dias demais; e longos demais, demais, DEMAIS!
E, neste rosário, a prece se faz: que os dias me tragam de volta a tua paz. E, neste rosário, a prece se faz: que os dias me tragam de volta a tua paz. E, neste rosário, a prece se faz: que os dias me tragam de volta a tua paz. 
No fim das contas, eu perco a c
                                                                                                     o
n

                                                                t

                                                                     a

                                                                              ,

                                                                                e nem me dou conta:
Faltam três
(  ) dias
(  ) meses
(  ) anos
(x) tanto faz.
Se me faz falta?
Ah, isso, faz.
E faz demais!
Que falta que eu sinto do meu rapaz...

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Planeta Solidão


Olá. Seja bem-vindo ao planeta Solidão.

Na verdade, ninguém é tão bem-vindo assim... Mas, já que pôs um pé, vá colocando logo o outro, que não gosto de rodeios.

Senhora ou senhor, saiba que não estou acostumada com "respeitáveis públicos". Não gosto de ser feita de palhaça; portanto, prometa que não vai rir. Isto não é um circo. Mas, para mim, tem toda a graça do (meu) mundo.

Credenciais aceitas, visto muito relutantemente carimbado e burocracia cumprida, sem mais delongas. Pode entrar. Não repare a bagunça. Mas, se reparar, também, que se dane. Meu mundo é um coração com uma porta - parece mais um cômodo grande, vermelho e com desenhos nas paredes. Num canto, um grande divã. Tem uma varanda grande, quase um terraço - e, lá fora, tem uma cidade que desconheço, com árvores, casas e um céu azul. Lá fora é aonde vou para fugir de mim mesma de vez em quando. Ou, ao contrário, me encontrar. Não me julgue: eu sei que você já tentou fazer isso pelo menos umas três vezes nos últimos dois meses.

Sou a única habitante do planeta, como o próprio nome já diz. E sabe o que é incrível? Não tenho vizinhos! Mas tem um violão em cima da cama. E, neste outro mundo, posso tocar violão de madrugada e cantar a plenos pulmões, sem esperar berros ou reclamações. Posso também tomar sorvete antes do almoço e andar descalça sem sentir frio.

As paredes são tão vermelhas; mas o divã tem listras brancas e azul-marinho. E o espelho não diz a esta outra "eu" se existe alguém mais neste mundo. Ele me diz verdades secretas sobre mim das quais tento fugir no seu mundo. Veja bem, que este não é o planeta Ego; em Solidão, os erros se tornam mais evidentes, e, os arrependimentos, um pouco mais doídos. Pois é aqui que se pensa na vida e também na morte, por inteiro e como um todo. As verdades que o espelho me disse estão pregadas nas casas onde mora ninguém, escancaradas nas nuvens, escritas na distante atmosfera de gás lacrimogênio. A estrela da Saudade impera absoluta e ilumina o planeta com um azul triste e mórbido - dá uma pontada de dor no coração da gente só de olhar para ela. Como nos arde a vista salpicada de pontos de luz ao olharmos para o Sol.

Mas, apesar de termos sido banidos da órbita do Sol, o céu ainda é azul lá fora. E as luas novas e gêmeas sorriem sempre; as rosas virgens furtam as cores da atmosfera, e tingem o intangível horizonte de uma beleza triste. São elas a minha companhia muda nos momentos em que a solidão é mais intensa; é quando solto o corpo aos poucos e me deixo sobrevoar lentamente o roseiral, em gravidade zero.

Agora vá, que devo ficar sozinha. No planeta Solidão, não há espaço para novos habitantes ou visitantes extraplanetários. Vou ficar bem, como sempre foi e sempre há de ser. Preciso manter viva e secreta a tradição da solidão, ou isto aqui vai lotar de gente. E, de gente, o mundo de lá já está cheio; vim aqui exatamente para fugir dessa gente. Vá procurar um planeta para si. Caia fora, que já passa da hora de dormir; quero tocar violão.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

A hora certa


Tique, taque, tique, taque. As horas e os minutos são iguais; a pergunta sacana e sem-graça é a mesma de sempre: "mãe, você está pensando em mim?".

Estou de olho na caixa de correio há dias, cantarolando please, Mr. Postman de maneira dramática e chorosa. Aquela resposta ainda não veio; mas, quando vier, não sei bem se quero saber qual é. De um lado, a possibilidade de que um amor tenha morrido na guerra, uma batalha tenha sido perdida, um plano tenha se frustrado. Do outro, um amor que sobreviveu a feridas brutais, uma batalha ganha, uma emenda que saiu melhor que o soneto. Já tenho minha (óbvia) escolha: o outro lado. Mas estamos jogando Vida, e nem tudo é uma questão de escolha; é ela quem dá as cartas e você, peão, é quem roda. Ou vence.

Talvez eu guarde aquele envelope dentro de um livro velho e arquive o assunto na minha consciência, pelo amor do esquecimento. Nem que seja para não aguentar nem cinco minutos até rasgar impetuosamente aquele envelope frágil - não; frágil sou eu. Mas até que tenho aguentado firme, mesmo que sem paciência - é que escrevi stay strong umas 58 vezes, à caneta, na parede do meu quarto, e mais uma na testa.

Dizem que está com previsão de chegada na "hora certa". Mas que porcaria de "hora certa" é essa? Algum tipo de carma ou clichê de livro de autoajuda? Disse o Sábio, com outras palavras, no livro de Eclesiastes: "as coisas acontecem quando têm de acontecer". Mas como é que isso funciona? Se pagar Sedex 10, será que chega amanhã? Será que chega, pelo menos, até semana que vem? Será que chega ontem? Ou anteontem? Chamem os carteiros, o Corpo de Bombeiros, a cidade inteira e o resto do mundo: a hora certa tem que ser agora. . Shazam!

Shazam? 

...

Sha...ZAM?!!

É... acho que não funcionou.

Tique, taque, tique, taque. Que horas são? Já é hora? Já chegou a tal da "hora certa"?

Checo mais uma vez a caixa do correio. Nem sinal. Mas a resposta está a caminho - nas costas de um caracol. Mas está.

Mas mãe, seja qual for a resposta: se as coisas acontecem quando têm de acontecer, elas também devem acontecer do jeito que devem acontecer, não é? O preço da resposta? Aceitá-la e fazer o melhor que se pode fazer com o que ela nos deu.

Lá vem o carteiro de novo; cantarolo Mr. Postman em meu pequeno ritual cotidiano. Quem sabe é hoje, aqui, agora? Quem sabe é esta a hora certa? Eu, sinceramente, não sei. Mas, quando ela chegar, vou abrir aquele envelope e sorrir para o que quer que encontrar dentro dele.

quinta-feira, 21 de março de 2013

4:04 AM

by Julien Mauve
Hoje eu tive um sonho estranho. Sonhei que você estava beijando outra garota - e você nem gostava dela! Eu até entendo, depois de ficar tanto tempo longe. Você sabe o que dizem: nove meses é muito tempo. É quase um ano. Não que essa longa viagem tenha me dado escolha - antes fosse! Mas não foi fácil para mim vê-lo prestes a beijar aquela garota, no alto de um prédio, após correrem um do outro por brincadeira - para, finalmente, alcançarem-se e matarem a sede um do outro. Realizando uma de minhas fantasias românticas. Como você nunca fez comigo.

Não lembro se você me viu; eu devo ter fugido em desespero. Fui refugiar-me junto às minhas melhores amigas, que me disseram que aquilo tudo era coisa da minha cabeça. Mas a verdade é que elas estavam apenas tentando me fazer sentir melhor; eu sei, pois vi pena nos olhos delas.

Ah, se você soubesse que eu estava de volta, depois de nove meses infinitos... mas logo você vai saber - pelos outros, não por mim. Será que você ainda vai se lembrar daquela tarde de outubro? Será que você vai saber onde enfiar a cara, ou usará sua cara mais deslavada? Ordinário! Será que você ainda vai querer se casar comigo, depois de toda essa palhaçada?

De quem é a culpa? Minha? Sua? Dela? Do tempo-e-distância? Da vida? Algum culpado deve haver. Mas onde ele está?

Puf. Acordei - com o coração partido e muita raiva de você. Olhei no calendário: dos nove meses, ainda faltam seis. E eu me pergunto o que será realidade quando eu estiver de volta.

sábado, 2 de março de 2013

Sobre crayons, guerras e a droga-paixão


Pois digo que primeiro namorado foi feito mesmo é pra gente errar. Não que a gente vá acertar sempre das outras vezes. Mas o primeiro namorado é aquele protodesenho torto na folha de sulfite do jardim de infância. Há tantas cores novas e tantas formas a explorar, e infinitas fantasias a concretizar no universo de um papel branco qualquer, sem-graça e vazio. E agarramos com força aquele giz de cera, tamanho o medo de perder (ou pior, de errar) - desajeitadas, trêmulas, extasiadas. Tão prestes a experimentar uma nova droga e viajar por um universo de cor; por vezes, dor. É a droga-paixão, a pílula vermelha, o pó mágico dos contos de fada.

Foi só então que comecei a desenhar. A última da turma. Queria que fosse especial.

O primeiro namorado é um rabisco confuso, a quem um dia chamei sol, casa, montanha, árvore, papai e mamãe. E eu era um rabisco-princesa loiro, de vestido pink e coroa, logo ali, no canto da folha, à eterna espera do Príncipe de Giz de Cera. E, na minha primitiva imaginação, todos aqueles rabiscos faziam sentido, e se comunicavam, e passavam ao mundo a mensagem do meu talento natural para o amor - que, mais tarde, descobri ser apenas um desastre natural do curso do crescimento.

E comecei a imaginar como seria quando meu lindo rabisco, a que chamava "meu desenho", estaria ali, pendurado na geladeira da cozinha, à vista de todos, com aprovação geral da família - todos estariam admirados tamanha a beleza da minha história de amor. Mas só eu era capaz de decifrar o que cada cor e traço queriam dizer - e ficava tão desapontada quando, ao apresentá-lo aos adultos, tinha de dar longas explicações e intermináveis seminários sobre quem ou o que eram meus rabiscos. Era tudo tão óbvio! Como não eram capazes de enxergar que aquelas duas formas abstratas concretizavam um amor? Como não entendiam que a solidão da Princesa Pink seria compensada com a chegada do Príncipe de Giz de Cera que, um dia, viria do tão distante reino dos conselhos da revista Nova?

Cheguei à conclusão de que ninguém jamais entenderia. Pois eu, e só eu, havia descoberto, inventado e patenteado o amor - e resignei-me a ser um gênio incompreendido, uma romântica incurável, uma drogada à margem de uma sociedade adulta e incompreensiva. Meu amor era tinta invisível: só os inteligentes eram capazes de vê-lo.

Havia uma epidemia na cidade: era tempo de vermelho-paixão, a droga da moda. E eu estava numa bad trip lascada, esculpindo castelos e muros floridos feitos de ar, indo do céu ao inferno em menos de cinco minutos, enxergando céus azuis em natureza morta. Eu pintava meus arcos-íris e meus corações, como fazia sempre; mas chegou o momento em que eu soube que, embora meus rabiscos agora parecessem fazer um pouco mais sentido para o resto do mundo, havia algo em mim que já não estava certo. Senti saudade dos delírios febris, quando os traços faziam todo o sentido do mundo para mim. Para nós dois, talvez. Mas, afinal, a que "nós dois" me refiro, se o Príncipe de Giz de Cera nunca veio?

Era a febre que começava a baixar. O primeiro amor; o pré-amor, que não chega a ser amor, amor - é mais um rito de passagem, um vício difícil de largar, e que, quando acaba, mais parece o fim do mundo, o fim de tudo! E, encurralada e finalmente sã, tive de fazer minha escolha: crescer e deixá-lo ir. Num ímpeto de desespero, rasguei o desenho antes que me arrependesse.

A professora ficou preocupada, chamou meus pais na escola. Meus desenhos estavam escuros demais naquela semana, e você sabe o que dizem os psicólogos: eu estava carente, com problemas, em crise, ou querendo fugir de casa. E era, sim, tudo aquilo, ao mesmo tempo. Mas, quando me perguntaram, desconversei e disse que aquilo era problema meu.

Os anos foram passando. E meus rabiscos viriam a se tornar bonecos de palito, que engordariam em caricaturas gozadas sobre qualquer notícia de jornal, que se tornariam cartuns na faculdade de Artes Plásticas - desenhos sobre tudo, sobre qualquer coisa, de sátiras cruéis sobre os exames de Sociologia a vestidos-objeto-de-desejo vistos na Vogue ou no sonho da noite passada. Eu tinha talento, afinal.

Talvez aquele rabisco não desse mesmo em nada. Mas rabiscos feitos jamais poderão ser apagados completamente - e, se o forem, deixarão marcas no papel. Boas, ruins, incômodas; marcas de algo que não deu certo, que não era para ser - mas foi. E, tudo o que já foi, jamais deixará de ser na história do Tempo, da Humanidade.

Voltei ao jardim de infância numa fração de segundo; olhei ao meu redor. Os desenhos dos colegas, pregados lado a lado num varal. Tantos outros triviais, tristes rabiscos, como o meu ex-rabisco - uns e outros faziam diferentes tipos de casas, meninas de vestido de babados, árvores de frutas vermelhas, e até mesmo grandes borboletas. Possibilidades que eu não havia explorado, ideias que eu não havia tido. Como nuvens num céu repleto de gaivotas ou um rosto feliz no sol poente.

E, hoje, vejo que aquele rabisco se tornou minha linha de apoio para que, um dia, eu voltasse a desenhar. Ousei trocar o crayon e sulfite por carvão e tela. Porque o amor se complica e se intensifica à medida que o experimentamos, até chegar o momento em que, voilá, temos uma obra de arte. Novas formas, novas cores, novas perspectivas, novos traços, filhos de uma mão firme. Minha Monalisa agora sorri de leve, revelando o mistério de alguns traços apagados, outros refeitos. Pois é assim que se segue: amando, errando, apagando e tornando a desenhar.

Mas, se tudo é possível, talvez haja exceções: crianças prodígio na arte do amor. E, diga-se de passagem, crianças-prodígio sempre dão um pouco de medo. Que, na verdade, é meio que uma inveja disfarçada. Mas, se o amor é mesmo um campo de batalha, como dizem, me recuso a acreditar em soldados sem cicatrizes de guerra.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Uni-duni-tê


Se há algo difícil de ser conquistado nessa vida, é a tal da certeza. Afinal, não nascemos com todas as convicções embutidas na alma (ou no cérebro), e nem mesmo nossos conceitos mais concretos estão imunes à comichão da dúvida. Os dilemas de Machado e Shakespeare estão irritantemente batendo à porta, o tempo todo.

E aí vem ela - aquela vontade de mudar tudo. De novo. Aquela, que vai e volta, mas não passa é nunca.

Tenho tudo de que preciso: a coragem. A oportunidade. A hora certa.

Mas, do outro lado do rio, a incerteza me aguarda. E, acima de tudo, o medo de perder. De me perder. Será mesmo coragem legítima?

Me explica aí, Raul, como é que funciona essa história de "metamorfose ambulante"? E as "velhas opiniões formadas sobre tudo", como é que ficam quando já não te servem mais? Você as guarda num caixote, cheirando a pintura de parede, no meio de uma sala vazia, recém-reformada, ou no fundo de um porão? Me diz, e se você as quiser de volta, alguma hora, por nostalgia ou por pirraça? Como é que você faz?

Será possível abrir mão de uma opinião, assim, tão facilmente, e deixá-la ir, sabendo que é inevitável ser carregado com o fluxo?

Eu tenho lá minhas dúvidas.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Dáktulos

Vão-se os anéis,
ficam-se os vãos.
Anulam-se os dedos,
dão-se as mãos.
saúdam-se todos
os dedos em vão,
dos pés e das mãos.
E, sem anéis, que já se foram,
se saúdam e se vão.
E se vão.

***

Gravata

Gosto de dar-te voltas,
ser seda em teu colarinho,
prender-te, dominar-te,
tocar-te a barba
abraçar-te, abarcar-te.
Batom em tua nuca
a complicar-te com mil nós;
eu gosto é de nós,
às voltas em teu colar;
colar-me a ti, colarinho,
cingir-te, cair pelo peito,
adormecida,
entretecida.

Adoro homem de gravata.

***
Chata eu

Gosto de coisas
que ninguém mais gosta,
poemas longos,
dicionários cavalares,
igreja aos domingos...
Minha música é velha
para alguém da minha idade,
e já fui da sua idade,
antes mesmo de pensar
que teria sempre vinte.
Uma mulher decidida,
tão crucialmente dividida
entre a vitrine e o aluguel
[oh, dívida cruel!]
"A complicada", "a previsível"
- quero ver me decifrar!
Você tá indo,
e eu também;
será que dá certo se a gente
voltar?
Falo muito,
penso alto,
mas gosto de estar
sozinha.
Gosto de ouvir o
vento,
de ouvir o
nada,
de fingir ser uma
estrela-do-rock-decadente-do-século-vinte-e-um-negativo.
Mas a verdade, meu bem,
é que há verdades que não entendo;
apenas creio no que tenho
ouvido,
vivido,
sentido
- sem ter tido!
Se faço sentido,
sou militar;
se não faço,
sou Salomão.
Mas, se um sexto sentido houver nesta vida,
daí, meu bem,
sou Salomé.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O vestido da sorte (final)


Ficamos juntos por oito músicas e meia. Porque, enquanto existem sortes feitas para durar uma vida, existem sortes que só duram o instante de uma raspadinha. E porque, pela incerteza de uma paixão, ninguém passa incólume. Como o Gabe e eu.

Seguimos dançando, rolando pelo chão, noite afora, noite adentro, frases desconexas, risos contidos que se arrebentavam em gargalhadas sem piedade, um pouco mais de violão, um pouco menos de explicações e justificativas, até que um sol nascia e nos trazia de volta à realidade do dia. Mas, noite após noite, seguimos como nossos amores vampíricos, com nossos telefonemas guturais, com nossa telepatia arquitetada, com nossas eras de planos e de músicas que jamais dariam certo. Ou dariam.

Oito músicas e meia - foi o tanto que conseguimos compor enquanto estivemos juntos. Da balada indie e clichê de Mrs. Robinson, passamos a diálogos musicais baseados em catarses e ímpetos de ciúme, ou de desejo febril. Engravidávamos de belas canções - abortávamos algumas, no entanto, e passávamos tempo sem conseguir escrever nada, e íamos nos amando para afogar a frustração e o tédio, para passar o tempo.

Não éramos Johnny e June, e estávamos longe de sermos Sid e Nancy, graças a Deus; mas, no jogo, no amor ou na música, a gente se dava bem, sem saber por quê, sem nem saber onde aquilo ia dar - se ia dar. De Mrs. Robinson, batizamos o recém-nascido amor com uma valsa bonitinha, tirada da trilha sonora de algum filme romântico adolescente, e logo nos enroscamos na salsa. Ele se declarou, guitarra em punho e joelho em terra, entre versos de pop rock - e meu batom manchou a letra da música, e o chão, e a sua guitarra branca que nos fazia companhia. Morremos de desejo ao som de Aerosmith, e de ódio a cada discussão fútil, e de saudade que nem (Pink) Floyd explica, ao ouvirmos, aos soluços, how I wish / how I wish you were here - enfim, como foi difícil encarar a verdade: que éramos nós as duas almas perdidas nadando naquele aquário! Ah, era o rock, o rock veio nos salvar. Tocamos a balada do amor inabalável.

Mas, ao final da faixa, éramos nós a morrer novamente - e de vez. Não era questão de piedade: era a dor impetuosa do blues da separação.

Ele passou a detestar o meu vestido, o meu vestido preto de viúva, e a dor de me encontrar por aí, nas esquinas, nos sonhos, em uma lembrança sem importância. Eu passei a detestar o seu quarto, agora tão cheio de móveis, e a sua guitarra branca, e as manchas de batom pelos cantos do seu quarto, da sua boca, e todas as nossas rimas.

E eu pensava, "que azar, meu Deus!" Azar. Sorte. Palavras tão cheias de nove-horas e presságios de loterias, ou de crendices e sacrilégios, de deus-me-livres e se-deus-quiseres. Mas só o que eu sabia, naquele exato momento, naquela exata pontada de dor, era a iminência da recuperação. Bastava um pouco menos de dor, um pouco mais de razão, aumentar um pouco o volume dos fones de ouvido e repetir para mim mesma, como uma oração ou uma canção de ninar, no alarms and no surprises, com voz de Regina Spektor, até sentir secarem as lágrimas.

E foi assim que fiz nosso amor adormecer, até, puf, sumir de nossas vidas sem deixar rastros - só som.

Hoje, o Gabriel é apenas uma foto instantânea no fundo de uma caixa de recordações. Eu tinha também o meio rascunho da última música que tentamos escrever, mas essa era dolorosa demais para deixar assim tanto tempo guardada. Passado o ódio e a dor do fim, eu estava inteira de novo. Meu cabelo agora era longo e ruivo - não crepom, e sim laranja. A faculdade continuava, e a vida seguia, e voltei para o violão - hoje, componho sozinha.

Nunca mais nos falamos. Quer dizer, ainda nos cruzamos de vez em quando, mas não nos sentimos confortáveis o bastante para nos encararmos e nos perguntarmos o que foi que aconteceu, onde foi que erramos, ou se valeria a pena continuar tentando.

Agora, você me pergunta que fim dei no vestido - nenhum. Pois aquele vestido me trouxe boas músicas, bons beijos, bons papos em boas noites enluaradas, boas inspirações e a sorte de um amor intenso, irremediável, incerto e belo. Passado o luto, vesti-me de preto novamente - o mesmo vestido, os mesmos jeans, com outras botas e outros brincos - eu é que já não era a mesma. Não, mesmo.

***
Um ano e meio de águas passadas e outras músicas, uma madrugada de sábado, um barzinho rock, um bando de amigos, meu vestido favorito. Um torpedo SMS.

"Ainda estou tentando entender que tipo de garota usa vestido com calça jeans."

É a ironia do destino brincando de ser feliz. Porque, com a sorte, nunca se sabe quando, nem o quê. Rio e cedo à tentação da resposta.

"É como a música: você já deve ter visto aquela combinação maluca em algum lugar, em um contexto qualquer, não faz o menos sentido, mas, de alguma forma, combina com a garota. E, o que é melhor, o vestido ainda cabe nela, como o verso ainda cabe na música. E continua sendo o que tem pra hoje."

- Que sorte que o verso ainda cabe na música. E que sorte encontrar minha garota preferida no meu vestido preferido.

Ergo os olhos, novamente cedendo à tentação do riso e da resposta.

- Não sou sua garota. E você sempre odiou esse vestido.

Ele sorriu, irremediavelmente lindo... e sacana. Estava mais velho, mais homem, mais barbudo, jaqueta de couro marrom, perfume matador.

- Então a sorte é que você ainda é a mesma Vicky de sempre. E que você também parece achar que ainda temos uma música pra terminar.

Dei um gole nas sobras de gelo derretido do fundo do copo e sorri - um pouco de sarcasmo na voz, que sou dura na queda.

- Pra terminar, eu não sei. Pra começar, talvez...

Ah, ironias do destino. Ou, no meu caso, do vestido. Porque, eu já disse, toda mulher que se preze tem um vestido da sorte. E o meu é preto e justo, de mangas longas e decote canoa.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O vestido da sorte (parte II)


- Tá desafinado, isso aí.

Tenho pavor de violão desafinado.

- Eu sei, né? Peraí, que eu tenho afinador.

Sorrio, sarcástica.

- Afinador é para os fracos: cabra macho afina no ouvido e toca na unha, sem palheta!

Levo um cutucão na cintura, como de costume. Mas confesso que, dessa vez, fico um pouco desconcertada.

- Para de encher o saco. Eu te falei, a acústica é bem legal aqui em cima.

O Gabriel morava num sobrado com os pais. Terceiro ano de faculdade, Engenharia - entramos ao mesmo tempo, mas ele pegou depê. Porque, afinal, velhos hábitos são difíceis de largar. Tipo a paixão por dormir nas aulas chatas e pela chamada "cultura do fundão".

Nós estávamos num cômodo grande, lá em cima, onde seria o quarto do Gabe pós-reforma. Tinha uma janela grande e retangular, sem grade nem vidro, e as paredes ainda cheiravam a gesso. O chão de madeira dava um toque mais aconchegante ao ambiente frio e sem móveis.

Eu tinha levado meu violão, e o dele já estava lá, esperando por nós, num solitário canto do cômodo vazio. Sentados no chão, ao som do silêncio de morte súbita, começamos a cutucar as cordas até à afinação.
Feito isso, a cutucação desenrolou-se em dedilhados delicados, até batidas complicadas de música experimental. Enfim, barulho. Era isso o que a gente gostava de fazer.

- A gente devia tentar escrever alguma coisa - disse ele, palheta na boca.

- Ando meio sem ideia. Você sabe como eu sou: só consigo compor quando não tenho a menor pretensão de...

- Are you trying to seduce me, Mrs. Robinson?

Ele me interrompeu com essa frase aleatória, que deve ter tirado de algum filme.

- Como é que é?

E repetiu a frase cantarolando, dedilhando as cordas, olhando pela janela, despretensioso. Acho engraçado quando seu cabelo fica assim, meio em pé, meio bagunçado, dando-lhe um ar de garoto solitário e abandonado. Mas continuei sem entender nada.

Encarei-o com olhos interrogativos, até que ele parasse e me encarasse direito.

- Você sabe, o filme. A primeira noite de um homem. O cara fala alguma coisa assim, e tal.

- Eu sei; mas por que...

- Música. Funciona assim: você assiste a um filme, lê um poema, escuta um disco, conversa com alguém, comete um erro, e ela acontece. Porque você precisa da música pra dizer ao mundo como você se sente. No meu caso, esse verso começou com um filme.

O Gabriel não bebia, nem fumava. Mas, às vezes, jurava que ele era meio zureta quando filosofava coisas tão sérias, assim, do nada. Ou será que era só eu que não estava acostumada a encarar que o Gabe também cresceu?

Sem dizermos nada sobre coisa nenhuma, simplesmente seguimos em frente e começamos a trabalhar naquele verso.

Are you trying to seduce me?
'Cause Mrs. Robinson, I know
that you know better
and I'm no fool
I'm just a poor boy
from some small town
from some small country
who wants to go home...

- Then kiss me goodbye.

Agora era ele quem me fitava com olhos interrogativos. Tentei justificar a sugestão.

- Ué, a música. Funciona assim: você não vê filme nenhum, nem lê poema nenhum, faz tempo que não escuta nenhum disco que preste, ninguém tem nada pra conversar com você, sua vida é totalmente normal, e ela acontece. Só porque aquele verso, que você deve ter ouvido em algum lugar, em um contexto qualquer, não faz o menor sentido, mas, de alguma forma, soa bem e cabe na música. É o que tem pra hoje.

Mais uma rodada de silêncio. Não estava acostumada com esses climas esquisitos com o Gabe - ele nunca foi de grilar assim quando estávamos compondo, nem de querer saber o porquê dos versos ou do raio que o parta. Enfim, ele pegou o lápis e garranchou minha sugestão embaixo do último verso.

Trabalhamos na música mais uma meia hora, e até que estava dando mais-ou-menos-incrivelmente certo.

Dedos em carne viva e garganta seca, deitamo-nos, entregues, lado a lado no chão de madeira. Já passava da meia-noite. Engatamos uma conversa qualquer sobre qualquer coisa, e fomos longe.

- Tipo esse seu vestido.

- O que tem o meu vestido, Gabriel?!

- Que espécie de garota usa vestido com calça jeans?

Estávamos deitados olhando o teto. Pseudo-indignada, virei meu corpo para ele, pronta para encará-lo com mil argumentos sobre que espécie de garota usa vestido com calça jeans.

- Ei! Eu uso. E outra, foi a primeira coisa que me apareceu pra vestir hoje.

Ele deliciava-se rindo, pelo prazer da provocação.

- Pois, que eu saiba, ou se usa vestido, ou se usa calça.

Resolvi entrar no jogo. Vamos ver quem rirá por último.

- Pois, que eu saiba, quem usa bermuda de surf com camiseta de banda e chinelo de dedo não tem lá muito conhecimento sobre moda.

- Qual é, Vicky? - ah, sim, essa sou eu, Vicky; prazer - Só você tem essas manias de doida. Tipo, pintar o cabelo de vermelho-crepom e, depois, virar a Barbie.

Filho da mãe. Barbie é a...

- De qualquer forma, - continuou, interrompendo meus pensamentos - até que fica bem em você. Quer dizer, por ser você.

Não entendi bem o que quis dizer. Mas, quando vi, um de seus dedos havia se enroscado em um cacho meu, e brincava. Estávamos, agora, deitados de frente um para o outro, estranhamente sérios e concentrados em qualquer coisa que não havíamos entendido bem o que era - ou que sabíamos muito bem o que era, mas não estávamos prontos para encarar.

Mas você sabe o que dizem sobre esses papos aranha, que começam do nada e terminam em lugar nenhum. O não-dito diz mais do que o dito, a teia já está armada, o silêncio pesa na atmosfera, as luzes estão apagadas, e o luar está tão bonito, e não sei bem o que está acontecendo, e estamos perto de mais, e não sei o porquê do arrepio, do calor, e dos olhos e mãos, e narizes e lábios...

Mas é o Gabriel! É só o Gabriel...

[Continua]

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O vestido da sorte (parte I)


Não importa o quão fútil isto venho a soar: toda mulher tem um vestido da sorte. E o meu é preto e justo, de mangas longas e decote canoa.

Extremamente democrático, vai com absolutamente tudo: com longas e provocantes botas pretas de camurça ou com All Stars atrevidos, com festas de casamento ou festas de família, com pernas de fora ou por fora do jeans, com meu ruivo crepom desbotado dos dezessete ou com meu novo loiro Pixie Lott. É, definitivamente, o vestido que me torna a mulher que eu quiser ser - ou a que não estava bem nos meus planos.

É um vestido usado - ou vintage, um eufemismo chique para coisas fora de moda que se tornam hype ao serem adjetivadas como tal. Devo tê-lo há uns bons anos - sei lá, há uns cinco? Não posso te dizer quando foi a primeira vez em que o usei - mas eu me lembro muito bem da primeira vez em que passei a acreditar em tão urbano talismã.

A primeira vez em que (o vestido) aconteceu foi num pós-casamento - no qual, aliás, não estava usando esse vestido. Sábado à noite, festa razoável, sem grandes emoções. Fui para casa - afinal, quem se importa se eu for para a cama às dez num fim de semana? Mas meu celular tocou.

- Oi, Gabe.
- Tá a fim de sair?

Não tava. Mas também não tava a fim de dormir. Pensei na proposta.

- Tá a fim de fazer um som?

Pronto, ele me pegou justamente na minha maior fraqueza: música. Larguei o conservatório aos dezessete, na mesma época em que parei de pintar o cabelo com crepom e em que inventei de entrar na faculdade de Arquitetura; mas ainda tinha uns bons anos de violão clássico na ponta dos dedos. E o Gabe sabia disso.

- Hum... hã... tá. Passa aqui então, que tô descendo.

Agora, imagine só. Eu não tava lá muito a fim de fazer nada. Mas, já que decidi sair pra "fazer um som", não podia ir com meu meia pata matador (que estava matando era o meu ), nem com meu vestido nude de cetim. E era o Gabriel - um desses garotos bobões que a gente conhece na escola, palhaço oficial da turma e meu melhor amigo desde a sexta série. Era  o Gabriel - então, não precisava me emperiquitar.

Eu tinha cinco minutos até o Gabe andar três quarteirões até a rua de casa. A noite estava fresca, e já passava das dez. Fiquei nua no quarto, à meia-luz, encarando o guarda-roupa - sábio e paciente oráculo face aos meus indumentários dilemas femininos de cada dia.

E eis que o oráculo atendeu à minha prece de macarrão instantâneo: ao abrir-lhe as portas, lá estava o vestido, sem mais, nem menos. Caiu bem com um jeans qualquer e a sapatilha preta de poá de sempre. Prendi a franja. Um pouco de preguiça de juntar os cacos do que foi uma maquiagem de casamento - um batom carmim deu jeito.

Mensagem de texto, "tô aqui". Suspiro - já que não tinha nada melhor pra fazer.

Um Gabriel de moletom me esperava na portaria do prédio. O violão tinha ficado em casa.

- Então, minha mãe tá reformando "uns cômodos aí"; tem uma sala vazia com uma acústica muito louca. A gente podia subir lá e tentar gravar alguma coisa.

Encarei o danado, prestes a dizer qualquer besteira em tom de descrença ou escárnio; mas eu só ri. Topei a brincadeira; afinal, era o Gabriel, e a gente nunca gravou nada antes, e a gente só vivia tocando juntos e rindo pelos cantos, com o resto dos meninos que jogavam truco no fundo da sala, no colegial.

[Continua]