quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O vestido da sorte (parte II)


- Tá desafinado, isso aí.

Tenho pavor de violão desafinado.

- Eu sei, né? Peraí, que eu tenho afinador.

Sorrio, sarcástica.

- Afinador é para os fracos: cabra macho afina no ouvido e toca na unha, sem palheta!

Levo um cutucão na cintura, como de costume. Mas confesso que, dessa vez, fico um pouco desconcertada.

- Para de encher o saco. Eu te falei, a acústica é bem legal aqui em cima.

O Gabriel morava num sobrado com os pais. Terceiro ano de faculdade, Engenharia - entramos ao mesmo tempo, mas ele pegou depê. Porque, afinal, velhos hábitos são difíceis de largar. Tipo a paixão por dormir nas aulas chatas e pela chamada "cultura do fundão".

Nós estávamos num cômodo grande, lá em cima, onde seria o quarto do Gabe pós-reforma. Tinha uma janela grande e retangular, sem grade nem vidro, e as paredes ainda cheiravam a gesso. O chão de madeira dava um toque mais aconchegante ao ambiente frio e sem móveis.

Eu tinha levado meu violão, e o dele já estava lá, esperando por nós, num solitário canto do cômodo vazio. Sentados no chão, ao som do silêncio de morte súbita, começamos a cutucar as cordas até à afinação.
Feito isso, a cutucação desenrolou-se em dedilhados delicados, até batidas complicadas de música experimental. Enfim, barulho. Era isso o que a gente gostava de fazer.

- A gente devia tentar escrever alguma coisa - disse ele, palheta na boca.

- Ando meio sem ideia. Você sabe como eu sou: só consigo compor quando não tenho a menor pretensão de...

- Are you trying to seduce me, Mrs. Robinson?

Ele me interrompeu com essa frase aleatória, que deve ter tirado de algum filme.

- Como é que é?

E repetiu a frase cantarolando, dedilhando as cordas, olhando pela janela, despretensioso. Acho engraçado quando seu cabelo fica assim, meio em pé, meio bagunçado, dando-lhe um ar de garoto solitário e abandonado. Mas continuei sem entender nada.

Encarei-o com olhos interrogativos, até que ele parasse e me encarasse direito.

- Você sabe, o filme. A primeira noite de um homem. O cara fala alguma coisa assim, e tal.

- Eu sei; mas por que...

- Música. Funciona assim: você assiste a um filme, lê um poema, escuta um disco, conversa com alguém, comete um erro, e ela acontece. Porque você precisa da música pra dizer ao mundo como você se sente. No meu caso, esse verso começou com um filme.

O Gabriel não bebia, nem fumava. Mas, às vezes, jurava que ele era meio zureta quando filosofava coisas tão sérias, assim, do nada. Ou será que era só eu que não estava acostumada a encarar que o Gabe também cresceu?

Sem dizermos nada sobre coisa nenhuma, simplesmente seguimos em frente e começamos a trabalhar naquele verso.

Are you trying to seduce me?
'Cause Mrs. Robinson, I know
that you know better
and I'm no fool
I'm just a poor boy
from some small town
from some small country
who wants to go home...

- Then kiss me goodbye.

Agora era ele quem me fitava com olhos interrogativos. Tentei justificar a sugestão.

- Ué, a música. Funciona assim: você não vê filme nenhum, nem lê poema nenhum, faz tempo que não escuta nenhum disco que preste, ninguém tem nada pra conversar com você, sua vida é totalmente normal, e ela acontece. Só porque aquele verso, que você deve ter ouvido em algum lugar, em um contexto qualquer, não faz o menor sentido, mas, de alguma forma, soa bem e cabe na música. É o que tem pra hoje.

Mais uma rodada de silêncio. Não estava acostumada com esses climas esquisitos com o Gabe - ele nunca foi de grilar assim quando estávamos compondo, nem de querer saber o porquê dos versos ou do raio que o parta. Enfim, ele pegou o lápis e garranchou minha sugestão embaixo do último verso.

Trabalhamos na música mais uma meia hora, e até que estava dando mais-ou-menos-incrivelmente certo.

Dedos em carne viva e garganta seca, deitamo-nos, entregues, lado a lado no chão de madeira. Já passava da meia-noite. Engatamos uma conversa qualquer sobre qualquer coisa, e fomos longe.

- Tipo esse seu vestido.

- O que tem o meu vestido, Gabriel?!

- Que espécie de garota usa vestido com calça jeans?

Estávamos deitados olhando o teto. Pseudo-indignada, virei meu corpo para ele, pronta para encará-lo com mil argumentos sobre que espécie de garota usa vestido com calça jeans.

- Ei! Eu uso. E outra, foi a primeira coisa que me apareceu pra vestir hoje.

Ele deliciava-se rindo, pelo prazer da provocação.

- Pois, que eu saiba, ou se usa vestido, ou se usa calça.

Resolvi entrar no jogo. Vamos ver quem rirá por último.

- Pois, que eu saiba, quem usa bermuda de surf com camiseta de banda e chinelo de dedo não tem lá muito conhecimento sobre moda.

- Qual é, Vicky? - ah, sim, essa sou eu, Vicky; prazer - Só você tem essas manias de doida. Tipo, pintar o cabelo de vermelho-crepom e, depois, virar a Barbie.

Filho da mãe. Barbie é a...

- De qualquer forma, - continuou, interrompendo meus pensamentos - até que fica bem em você. Quer dizer, por ser você.

Não entendi bem o que quis dizer. Mas, quando vi, um de seus dedos havia se enroscado em um cacho meu, e brincava. Estávamos, agora, deitados de frente um para o outro, estranhamente sérios e concentrados em qualquer coisa que não havíamos entendido bem o que era - ou que sabíamos muito bem o que era, mas não estávamos prontos para encarar.

Mas você sabe o que dizem sobre esses papos aranha, que começam do nada e terminam em lugar nenhum. O não-dito diz mais do que o dito, a teia já está armada, o silêncio pesa na atmosfera, as luzes estão apagadas, e o luar está tão bonito, e não sei bem o que está acontecendo, e estamos perto de mais, e não sei o porquê do arrepio, do calor, e dos olhos e mãos, e narizes e lábios...

Mas é o Gabriel! É só o Gabriel...

[Continua]

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